MEDO DO INFERNO.
“Eu lhes digo, meus amigos: não tenham medo dos que matam o
corpo e depois nada mais podem fazer. Mas eu lhes mostrarei a quem vocês devem
temer: temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar no
inferno. Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer”. (Lucas 12.4,5).
Um belo dia, enquanto estava lendo “Vidas Secas” de
Graciliano Ramos, uma parte da leitura chamou-me a atenção. O livro retrata a
vida e o cotidiano de uma família que convive de perto com as agruras e
dificuldades causadas pela seca nos sertões do nordeste do Brasil. Das personagens principais destaco, Fabiano o
pai de família, sinhá Vitória a esposa e os dois filhos do casal. Não posso deixar de fora a cadela de nome
“Baleia”, personagem fundamental na sina.
O que a atenção me chamou foi a dúvida “teológica” esboçada
pelo menino mais velho do casal. Sinhá Terta (outra personagem) usa em seu
vocabulário a expressão “INFERNO”, expressão essa que o menino “nunca tinha
ouvido falar”. Procurando entender um pouco mais sobre o assunto, pediu
informações à Sinhá Vitória sua mãe, que resumiu o inferno como sendo “um certo
lugar ruim demais”.
Inconformado, o menino, desejoso por saber mais sobre a tal
palavra, foi a sala interrogar Fabiano seu pai. Como não obteve resposta alguma,
voltou a cozinha para pendurar-se à saia da mãe.
Continuou com sua pergunta sobre o tal inferno. Sua mãe, no
desejo de ver-se livre do menino, falou sobre “espetos quentes e fogueiras”.
O menino não resistiu e perguntou: - A senhora esteve lá?
A mãe achou a pergunta insolente e decidiu lhe aplicar um
cocorote (cascudo).
Parece que neste exato momento o menino “des-cobriu” os primeiros
conceitos do que seja um verdadeiro “inferno”. Ficou o pobre menino indignado
com tamanha injustiça.
O menino, atravessou o terreiro da casa, e possuído pelo
medo, foi esconder-se debaixo das catingueiras murchas; junto ao seu lado, estava
a cachorra Baleia. A voz estridente e irritada de Sinhá Vitória e o cascudo que
levou o pobre menino pareciam evidenciar também para a cadela Baleia que as
coisas não estavam bem.
Até então, todos os lugares para o menino eram bons: o
chiqueiro, o curral, o barreiro, o pátio o bebedouro. O desafio agora era
compreender uma nova palavra: Inferno.
Era inacreditável, uma palavra até bonitinha, parecia designar uma coisa
muito ruim.
A conclusão do menino sobre o que seria o tal inferno foi terrível:
“O inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as pessoas que
moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca”.
Não é de hoje que pessoas buscam de forma contundente,
produzir conceitos e interpretações do que realmente seja o inferno. Alguns
teólogos cristãos, na tentativa de explicar o que seria de fato o inferno,
interpretaram as imagens bíblicas sobre o inferno como descrições literais.
Entre os mais comuns estão: O Pastor de Hermas, Inácio de Antioquia, Tertuliano
e Tomás de Aquino.
Dante Alighieri foi com certeza o maior representante da
imaginação medieval sobre o inferno. Ele apresentou um retrato do Inferno que
se tornou popular em sua época: Limbo, luxúria, glutonaria, avareza, ira,
heresia, fúria, fraude e traição. Nesses termos ele demonstrou que o inferno é
lugar de gente açoitada por uma chuva negra e fina, que empurra pedras
eternamente, que são imersos num pântano de podridão, gente que queima
eternamente em tumbas em chamas.
O que daria sustentação e manteria de pé um conceito de
inferno tão terrível? Para Dante “...são só a avareza, a inveja e a soberba os
fogos que mantêm o ânimo aceso”.
Não é difícil sentir medo e pavor de um lugar assim. Tanta
dor, ódio, fogo e morte parecem justificar muito do que sentimos quando
pensamos no inferno.
Como trabalhar esse medo? É próprio da natureza humana dois mecanismos
de defesa: Dor e Medo. Sem esses dois deixaríamos de ter alertas e de ficar em
estado de atenção; afinal, a maior vulnerabilidade é supor-se invulnerável. O
Medo, portanto, não nos ameaça, a não ser quando se torna exagerado (e vira
pânico), ou irracional ou obsessivo, saindo do território da prontidão e
entrando no território da doença.
Muita gente quer evitar que uma criança tenha medo, mas, para
ela, o significado é o mesmo: mecanismo de defesa. Porém, o desenvolvimento
ainda incipiente dos movimentos mais elaborados de racionalidade leva a criança
a maximizar seus medos e focá-los em lugares onde não deveriam e nem
precisariam estar, e esta criança deve ser formada para ver o medo onde de fato
está.
O medo, ao ser enfrentado, dá vigor à identidade e à
personalidade; afinal, uma criança sempre precisa ser lembrada que Coragem não
é a ausência de medo, mas, isso sim, a capacidade de enfrentá-lo. Ter coragem é
não acatar uma visão fatalista ou aterrorizante daquilo que nos cerca e saber
que o enfrentamento do que nos amedronta exige reflexão, preparo e ação.
Há muita gente imatura quando o assunto é medo. Quantos se
aproveitam das fragilidades das pessoas e procuram fazê-las praticar ações
desejadas por meio de torturas que se valem do medo como ingrediente principal.
Alguém que realiza ações apenas movido pelo temor, perderá sua autonomia e
desenvolverá personalidade adoentada. (É nesse momento que o inferno amplia seu
território).
Pense em cada ser humano como um indivíduo que está sobre um
grande muro divisor. Um muro divisor entre o bem e o mal ou mesmo entre o céu e
o inferno. Lá do alto deste muro cada indivíduo pode receber um “apavorante”
aviso ou de outra forma um tipo de sábio “alerta”:
- “Desça daí porque você vai cair” – Soa como uma profecia
apavorante.
- “Cuidado, pois você pode cair” – Um alerta, uma
advertência.
A forma pela qual se é instruído revela muito sobre os medos
e pavores. “A sensação de um medo
continuado e inesperado que invade muitos homens e mulheres pelo planeta afora
literalmente aterroriza as suas existências e bloqueia a possibilidade de
partilharem momentos de paz”. Isso é medo. É uma antessala para o inferno.
Quanto o assunto é medo, percebemos um razoável consenso: Os
tempos estão terríveis, difíceis, complicados; partilhamos uma época de grande
intranquilidade espiritual, de inúmeros padecimentos físicos, de infindos
distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais. Cabe, porém, uma questão:
Alguma vez não foi assim? Levando em conta que todo e cada ser humano sempre
viveu na era contemporânea, em qual delas não teria valido, então o alerta de
Guimarães Rosa de que “viver é muito perigoso”? Quem não se amedronta diante de
grande perigo?
Será impossível viver e não sentir medo. Viver pode ser muito
perigoso, ainda mais quando se tem alguém trabalhando para tornar sua vida um
verdadeiro inferno. Não se pode subestimar a hostes do Inferno. Não se pode
ignorar toda a ação advinda do inferno: “Com força e com furor, nos prova o
tentador, com artimanhas tais e astúcias infernais que iguais não há na terra”.
(Martinho Lutero).
De onde se insurge esse inferno? Como o inferno amplia seu
território e conquista tanto lugar mesmo no meio de pessoas bem-intencionadas?
Parece que grande parte dessa batalha é travada dentro de
cada um de nós. Gosto muito do que disse Tiago sobre esse assunto: “Cada um,
porém, é tentado pela própria cobiça, sendo por esta arrastado e seduzido. Então
a cobiça, tendo engravidado, dá à luz o pecado; e o pecado, após ter-se
consumado, gera a morte”. (Tiago 1.14,15).
Para entender essa idéia de ser arrastado pela sua própria concupiscência,
gostaria de sugerir que analisássemos um texto de Agostinho de Hipona sobre
duas cidades: A terrena e a Celestial.
“Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o
amor-próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao
desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a
segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima
glória a Deus, testemunha de sua consciência. Aquela ensoberbece-se em sua
glória e esta diz ao seu Deus: Sois minha glória e quem me exalta a cabeça.
Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas veem-se sob o jugo da
concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes,
aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela ama sua própria força em seus
potentados; esta diz a seu Deus: A ti hei de amar-te, Senhor, que és minha
fortaleza. Por isso, naquela, seus sábios, que vivem segundo o homem, não
buscaram senão os bens do corpo, os da alma ou os de ambos e os que chegaram a
conhecer Deus não o honraram nem lhe deram graças como a Deus, mas
desvaneceram-se em seus pensamentos e obscureceu-se lhes o néscio coração.
Crendo-se sábios, quer dizer, orgulhosos de sua própria sabedoria, a instâncias
de sua soberba, tornaram-se néscios e mudaram a glória do Deus incorruptível em
semelhança de imagem de homem corruptível, ... Nesta, pelo contrário, não há
sabedoria humana, mas piedade, que funda o culto legítimo ao verdadeiro Deus, à
espera de prêmio na sociedade dos santos, de homens e de anjos, com o fim de
que Deus seja tudo em todas as coisas”.
Numa leitura simples e singela deste texto já se percebe como
é gigantesca e abissal a diferença entre o Céu e o Inferno. É do inferno que
temos de fato medo. É de fato uma realidade que nos deve amedrontar. O inferno
que é trazido a existência pelo total desprezo a Deus. Sabemos que: “Quando a vontade abandona o que
está acima dela, e volta-se para o que é inferior, torna-se má – não porque
aquilo para o que ela se volta é mau, mas porque o voltar-se por si mesmo é perverso”.
(Cidade de Deus, XII, 6).
Que precioso seria se o inferno perdesse território hoje. Deixemos
o Inferno, não vivamos mais nele, esvaziemos o inferno de essência e conteúdo. Aceitemos os alertas e descrições que são
feitos sobre tão terrível realidade e também tão terrível lugar.
João Calvino, nos deixa um significativo alerta: “...nenhuma
descrição pode igualar-se à gravidade da vingança contra os réprobos, seus
tormentos e suplícios nos sãos apresentados sob a figura de coisas corpóreas,
como trevas, pranto e ranger de dentes (Mt 8, 12; 22,13), fogo inextinguível
(Mt 3,12; Mc 9,43), verme que rói o coração incessantemente (Is 66,2). Pois é
certo que o Espírito Santo quis, com tal maneira de falar, perturbar nossos
sentimentos por meio do horror; como quando diz que uma geena profunda lhes
está preparada desde toda a eternidade, e que, para mantê-la, sempre há fogo e
muita lenha, e que o sopro do Senhor a acende, como uma torrente de enxofre (Is
30,33)”.
É assim que somos ajudados a entender, por intermédio de tais
expressões, a miserável sorte dos ímpios, assim também devemos firmar nossa
atenção ao máximo no quanto seria calamitoso estar alijado da companhia de
Deus; e não somente isso, mas sentir a majestade de Deus nos sendo totalmente
contrária. Isso seria um verdadeiro inferno. A indignação de Deus é como fogo
violentíssimo, em cujo o contato tudo será devorado e absorvido. Como afirmou
Paulo em sua carta aos tessalonicenses: “Com labaredas de fogo, tomando
vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de
nosso Senhor Jesus Cristo; Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição,
longe da face do Senhor e da glória do seu poder”. (2 Tessalonicenses 1.8,9).
Pouco se sabe sobre a realidade do Inferno, contudo, o que se
deixou conhecer é de bastante significado: “Quanto à localização do mundo em
que as almas dos réprobos sofrem, as Escrituras não apresentam qualquer
vestígio. Em Judas versículo 6, nos é dito: “os anjos que não guardaram seu
primeiro estado, mas abandonaram sua própria habitação, ele os tem reservado em
algemas eternas, em trevas, para o juízo do grande dia”. Em Mateus 25.41, o
Juiz, no último dia dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Apartai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. O homem
rico, estando em tormentos, do inferno ergueu seus olhos, enquanto seus irmãos
ainda viviam neste mundo (Lucas 16.23). Mas onde tais localidades se situam, e
se tal lugar de tormento, agora, é idêntico ao lugar de tormento após o juízo
final, ninguém pode dizer, porquanto Deus não no-lo revelou. ”. (Confissão de
Fé de Westminster).
Nosso objetivo aqui não é aguçar o seu medo, pelo contrário,
é lembra-lo de que para o Inferno o antídoto é o Céu. Sei que você pode tomar
hoje sua decisão de não mais povoar esse inferno e nem tão pouco ser parte
dele. O que desejo é ver o inferno esvaziado. Esvaziado não somente no
conceito, mas também, por aqueles que deveriam habitá-lo e que buscaram não
mais pertencer e nem ser parte deste tenebroso lugar.
Sinto paz a cada dia, quando me lembro que hoje pertenço a
Jesus. Jesus é o caminho seguro para o céu. Ele venceu a morte e destruiu os
poderes do inferno. Quando o inferno tenta se levantar, começo a cantar e me
lembrar: “Se nos quisessem devorar, demônios não contados. Não nos iriam
assustar, nem somos derrotados. O grande acusador dos servos do Senhor, já condenado
está; vencido cairá, por uma só palavra”. (Martinho Lutero).
Referências.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 127ª Edição. Rio de Janeiro:
Record, 2015. Págs. 55-61.
CORTELLA, Mário Sergio. Não se desespere! : provocações
filosóficas. 7ª Edição. Petrópolis – RJ: Vozes, 2014. Págs. 67-70
CORTELLA, Mário Sergio. Não espere pelo Epitáfio!;
provocações filosóficas. 16ª Edição. Petrópolis – RJ: Vozes, 2014. Pg. 44
CORTELLA, Mário Sergio. Não nascemos prontos! : provocações
filosóficas. 19ª Edição. Petrópolis – RJ: Vozes, 2015. Pg. 67.
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A Cidade de Deus: (Contra
os pagãos), Parte II. 8ª Edição. Tradução Oscar Paes Leme. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2013. Capítulo XXXVIII – As duas Cidades. Origem e qualidades. Págs.
180-181.
ALIGHIERI, Dante . A Divina Comédia- Inferno. Edição
Bilíngue. Tradução Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2014 (3ª edição). Pg.
57.
SUTTON, Joan Laurie (org.). Hinário para o culto Cristão,
“Castelo forte é o nosso Deus”, Letra e Música de Martinho Lutero.
FERREIRA, Franklin. Teologia Sistemática: Uma Análise
histórica bíblica, e apologética para o contexto atual. Allan Myatt. São Paulo:
Vida Nova, 2007. Págs 1058-1060. (inferno).
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo II,
Livros III e IV. Tradução Elaine C. Sartorelli. São Paulo: UNESP, 2009. Págs
460-461. (III.25.12)
CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER. Comentada por A. A. Hodge.
Tradução Valter Graciano Martins. 4ª Edição. Editora os Puritanos, 2013. Págs.
513-514. (Capítulo XXXII, 5, 2,vi)
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