O VOTO E O REINO DE DEUS

O Voto e o Reino de Deus

Comparecer às urnas de forma consciente, crítica e cidadã pode fazer a luz de Cristo brilhar na sociedade.
Por Eduardo Pedreira

Participei de uma das manifestações que inundaram as nossas cidades no ano passado. Estava na Avenida Paulista, epicentro simbólico do poder financeiro da maior metrópole latino-americana. Foi uma das noites mais marcantes da minha experiência cívica. Àquela altura, os protestos ainda não tinham sido dominados pela violência que viria a se instalar posteriormente. Recordo-me, emocionado, das muitas faces carregando a esperança de abrirmos um capítulo novo em nossa história. A variedade e a complexidade dos problemas nacionais eram tamanhas que a ausência de foco dos protestos condenava a incipiente reação popular a não chegar concretamente a qualquer mudança. Mesmo assim, olhando para trás, continuo afirmando a importância daquele momento para a trajetória deste país. A visão de como a ativa participação do povo é capaz de acuar aqueles que agem como se donos do nosso destino fossem não vai mais sair da minha memória afetiva como cidadão brasileiro. Atendi ao apelo das ruas e não me arrependi!

Este ano, outro chamado se coloca em nossa agenda. Somos convidados às urnas para, através de eleições majoritárias, escolher presidente, senadores e governadores. Numa democracia, o voto é a voz mais concreta das nossas aspirações e desilusões. Exercê-lo é um dos maiores atos de cidadania para todos em geral e, especialmente, para nós, cristãos. Infelizmente, o total descrédito que alcançou o discurso político, com suas promessas vazias, tantas vezes insultando nossa inteligência, associado aos intermináveis escândalos de corrupção, quase sempre (senão sempre) nos impõe escolher o menos pior e não o bom. Sem dúvida, neste cenário, aumenta significativamente a sedução do voto nulo ou em branco. Resisto a semelhante tentação e o faço propondo que percebamos o ato de votar na perspectiva do Reino de Deus: pois, somente assim, ele ganha um sentido mais amplo.

Mesmo um olhar pouco atento à biografia de Jesus nos revelará o Reino de Deus como o núcleo dos seus discursos, a razão dos seus milagres, o alicerce mais sólido de sua existência. Sua comida e bebida era fazer a vontade do seu Pai e ele desejou o mesmo para nós quando, na mais elementar oração, nos ensinou a pedir: "Venha o teu Reino”. Jesus pouco falou sobre a Igreja. Emerge, sim, de sua mensagem, uma interessante articulação entre Reino, mundo e Igreja. O Reino é a moldura maior, a realidade absoluta, a referência divina para tudo. O mundo é o "lugar" da manifestação concreta deste Reino. É aqui, nas tramas da história, na tessitura do cotidiano, o lugar onde o Reino vai se realizando. A Igreja não é o Reino; é apenas uma das suas mais claras traduções. Como a Lua somente brilha por ser iluminada pelo Sol, a Igreja tem no Rei­no sua razão de ser. Nunca idealizada como instituição, mas sim, como uma comunidade organizada de discípulos de Jesus vivendo o Reino de Deus, a Igreja tornar-se-ia o modelo por excelência para modelar o todo social. Seriam as relações comunitárias da Igreja de Jesus Cristo as referências para se construir um ideal de nação. Eis o porquê de Jesus ver a comunidade dos seus seguidores como o sal da terra e a luz do mundo. Se a Igreja falha em salgar e iluminar, o Reino encontra outros canais de sua manifestação.

Por sensibilidade aos seus ouvintes, Jesus usou metáforas muito simples para falar deste tópico tão central do seu ensino. Um fermento a levedar uma massa de pão; a semente de mostarda plantada e feita árvore, sobre a qual pássaros se aninhavam; o banquete promovido por um rei... A simplicidade era apenas uma arte para traduzir um mistério de difícil compreensão. O Reino, conforme revelado por Jesus, era marcadamente paradoxal: ao mesmo tempo que está dentro de nós, também nos é uma realidade externa; está em nosso coração, mas também nas es­truturas sociais e políticas que se constroem ao redor de nós. Ele já está presente agora, mas ainda não em sua manifestação plena, a realizar-se no futuro; o Reino promove a paz, mas exige a inquietação e a indignação do enfrentamento às forças contrárias ao seu estabelecimento.

Ter o Reino de Deus como baliza para o exercício cidadão do nosso voto e mesmo da nossa atuação política traz, naturalmente, imperiosas implicações. Compreendê-lo como já estando presente, aqui e agora, implica ver nosso ato de votar como um canal da concretização deste mesmo Reino. Votar bem é tão importante para este país quanto orar por ele. Saramos nossa terra das suas doenças, também, exercendo de maneira plena e cidadã nosso legítimo direito de escolher os melhores representantes. Para isto acontecer, é necessário assumir a responsabilidade da pesquisa, da busca da informação, da necessária diligência a fim de fazer do nosso clique na urna eletrônica o poder capaz de mudar um país. Votar bem e votar certo só é possível quando se desenvolve uma visão crítica daqueles que se apresentam em busca de nosso voto, e não transferindo aos líderes eclesiásticos - sejam eles quem forem - a última palavra de nos dizer em quem votar. Precisamos nos libertar desta alienação geradora do analfabetismo político.

Urge que nosso interesse vá além da vida eterna do ali e do além em prol de uma atuação no aqui e no agora. Somos o povo de Deus, e não um curral eleitoral; somos seres pensantes, e não mulas sem entendimento que necessitam de cabresto dos seus donos para seguir a direção desejada por eles.

Entender o Reino como um mistério não domesticável, tal qual o Espírito a soprar como vento onde menos se espera, é superar uma visão tribal do nosso voto. Precisamos, em outubro próximo, escolher candidatos capazes de pensar as grandes questões nacionais, no caso de governantes e legisladores federais, e enfrentar os dilemas do cotidiano que nos são mais próximos, no eu se refere aos deputados estaduais - e não gente que venha a agir, nos governos e nas Casas legislativas, em benefício somente das igrejas e grupos eclesiásticos que os indicam ao eleitor. Precisamos ir além dos assuntos morais e daqueles ligados à família cristã. Isso é reduzir a agenda política. Os importantes e desafiadores temas que dizem respeito ao homossexualismo, à legalização do aborto e do consumo de entorpecentes não deveriam ser as nossas únicas preocupações quando vamos votar. Existem reformas de base a serem feitas nesta nação, capazes de nos fazer dar um salto definitivo rumo ao desenvolvimento capaz de promover enorme bem estar para toda a população. O Brasil reclama reformas no sistema eleitoral, na política, nos mecanismos tributários e nas instâncias judiciais, entre muitas outras que deveriam ocupar nossa agenda com a mesma intensidade com a qual colocamos energia nos aspectos religiosos e morais. Deveríamos nos focar em temas do Reino de Deus, não permitindo que a Igreja se transforme numa tribo isolada das preocupações que tocam todo o país. Por isso mesmo, irmão não é obrigado a votar em irmão. Um candidato deve ter como credencial algo maior do que seu título pastoral ou o desejo de ser um mero despachante para agilizar as "coisas" da igreja; ele precisa ser versado e habilitado para propor soluções a complexos problemas e ostentar um discurso mais amplo do que a aquele cheio de jargões religiosos. O Reino de Deus é maior que a Igreja e inclui temas e pessoas que podem vir a ser excluídos por uma instituição. Precisamos construir uma nação para todos, e não um território onde encontram lugar aqueles que desejam participar da nossa tribo.

FORÇA E TRANSFORMAÇÃO

Ver este mundo como um palco no qual se manifesta o Reino de Deus é vacinar o nosso voto contra aqueles que transformam a igreja em seu império pessoal a ser usado como moeda de troca na disputa eleitoral. Infelizmente, não se governa um país como o nosso sem alianças. Certamente, fazer composições imperfeitas com partidos e pessoas igualmente distantes da perfeição faz parte do exercício do poder. Eis porque deveríamos ter candidatos que não fossem ingênuos como pombas, mas prudentes como as serpentes. Não nos esqueçamos que, da serpente, deve-se admirar a prudência, não a natureza venenosa que leva à morte. Seria muito bom se todos nós, eleitores cheios de um santo discernimento, reconhecês­semos os lobos vestidos de ovelhas que nada fazem senão saquear o aprisco - e a eles, através do nosso voto, disséssemos um retumbante não. Experimentar o Reino não somente como realidade interior, mas, também, estando presente nas estruturas político-sociais do nosso povo poderia nos levar a ter escolas dominicais mais amplas. Além do insubstituível ensino da Bíblia, porque não transformar os nossos espaços, também, numa escola de formação de cidadãos? Que tal uma experiência de ensino que, além da teologia, da doutrina e do conhecimento da Palavra de Deus, incluísse uma educação formadora de consciências capazes de se interessar por temas facilmente julgados como “não espirituais"? Se o Reino já está em nós, entre nós e além de nós, então, tudo é espiritual. Todas e quaisquer coisas que tocam a vida humana e a sociedade na qual vivemos é do interesse do Senhor do Reino, e deveria sê-lo também de nós, os seus súditos.

Respirar o ar do Reino de Deus nos faz sonhar com a possibilidade de que as igrejas pudessem produzir candidatos bem formados bíblica, intelectual e politicamente. Dado que o voto evangélico é uma importantíssima variável na nossa equação eleitoral, ao invés de sermos massa de manobra, quão maravilhoso seria se exercêssemos esta nossa força no sentido de pautar transformações para toda sociedade. Mas, é claro que nossas igrejas são um reflexo do nosso tecido social. Nossa óbvia ausência de educação mais sólida transparece em nossas comunidades. E a nossa ignorância social e política é um solo fértil para os piores candidatos - não somente os de fora, mas os de dentro da igreja. Diante desse quadro, nossa alma fica sempre a cambalear entre as forças da desesperança, geradoras do cinismo, e a insistente atuação profética que busca manter acesas as chamas da esperança e da vida.

Sempre que nos sentirmos perdendo essa batalha, deveríamos olhar de novo para Jesus e para o Reino pelo qual ele viveu e morreu. Então, sentiremos renascer em nós uma força que, acima das circunstâncias, nos fará continuar indo em frente, mesmo que a figueira nem sempre pareça florescer.

Nas próximas eleições, depois do devido estudo, da necessária dedicação em busca do discernimento e de uma boa dose de senso crítico, vamos às urnas, desejando que, ao apertar o botão eletrônico, escutemos, lá no fundo do nosso ser, a voz do Senhor, dizendo: "Pai nosso, venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus!".


Eduardo Pedreira é pastor da Comunidade Presbiteriana da Barra da Tijuca, no Rio, e um dos líderes do movimento de formação espiritual Renovare. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) é também professor da Fundação Getúlio Vargas. (IN: Revista Cristianismo Hoje, edição 42, anos 7. Pp. 29-31.

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