OS POBRES


“Porque sempre tendes os pobres convosco, e podeis fazer-lhes bem, quando quiserdes...”. (Marcos 14.7).

Quem são os pobres?

Seriam os desterritoriados? Cremos que pobres são os despossuídos, não de qualquer território, de casa, de emprego (embora não de trabalho), de local (embora não de lugar), de família (embora não de nome) e enfim do próprio corpo (no caso dos escravos e servos das Colônias e Impérios). São em suma, um estado nômade. Pobre na conceituação mais comum é quem “se vira”. Pobre é quem só tem amigos pobres. Pobre é quem mora em locais pobres quase sempre sem água, esgoto e coleta de lixo. Pobres seriam então os excluídos? (1).

Excluído seria o melhor termo para ser utilizado? Excluídos é um termo muito perigoso. De fato, é impossível excluir alguém da sociedade, ela não tem exterior. O que se tenta excluir voltará como trabalho, civilização ou fantasma: a exclusão é impossível. O “excluído” não está, de forma alguma, fora da sociedade. Sua exclusão quer dizer “inclusão” como pobre, explorado e discriminado, desejo sobrante. O uso acrítico do termo pode consolidar a idéia ingênua de que há duas sociedades (a dos incluídos e a dos excluídos) quando na verdade a inclusão é função da exclusão, uma é a negação da outra, sua antítese. Essa é uma armadilha que costuma conduzir ao uso de categorias como “exclusão”, “marginalização” e mesmo “dualidade econômica” ou dois “países” divididos e etc....
Essa é a grande miséria na verdade, a da questão: se desejamos mesmo praticar a exclusão de alguém, na realidade ele retorna. O excluído baterá a porta do seu excluidor, agora como um fantasma ou monstro, desestruturando-o. A negação não tem o poder de suprimir a coisa negada, mas apenas o negador.

 Nosso modelo de dualidade legitimou racial e culturalmente a distribuição de diferentes papéis econômicos: uma banda se alimenta da outra. Numa sociedade onde a notícia substitui a literatura, é fácil ser manipulado e aceitar equívocos como se fossem verdades. “A vox Populi vox dei, adágio de manifesto teor místico, com que se afirma coroada a opinião pública, era tão somente o verbo de comunicação da sociedade liberal com as classes que a rigor não faziam a opinião, mas tinham o dever de aceitá-la, passivamente”. (2).

A identificação por classes. “Classes que não faziam a opinião” – É sutil a armadilha. A subclasse não é apenas a ausência de comunidade, é sua impossibilidade. Em última instância, isso também significa a impossibilidade de uma humanidade – porque só por meio de uma rede de comunidades que detenha os direitos de conferir e endossar uma identidade socialmente legível e respeitada se pode ingressar na humanidade. (3). Mas a subclasse também é uma categoria liminar ao extremo. Ela mostra o apavorante deserto a que o território da exclusão, uma vez penetrado, pode conduzir; um deserto além do qual só pode haver um vazio, um buraco negro sem fundo. A subclasse é um nítido retrato da insignificância a que os seres humanos podem ser rebaixados, cair, ou ser empurrados; e a sorte dos que nela são classificados pode parecer desesperadamente irreversível e irreparável, para além do ponto de retorno... “é por isso que a subclasse é considerada tão desagradável e repelente...”(4).

Em tempos de modernidade, a questão da pobreza está diretamente ligada aos temas trabalho e renda e consequentemente associada ao desemprego. “A vida de um desempregado é horrível, porque na nossa sociedade tudo depende do trabalho: salário, contatos profissionais, prestígio.... Portanto, se falta trabalho falta tudo”. (5)

Na perspectiva política, “a incerteza e a vulnerabilidade humanas são os alicerces de todo poder político” (6). Como a política tira proveito dessa situação.

 É se dizendo combater esse efeito duplo de incerteza e vulnerabilidade, que o estado moderno surge com a promessa de proteger seus súditos. Nessa promessa encontramos a razão de ser do estado. Aqueles que em tais promessas confiam ou acreditam, prestam sua obediência e apoio eleitoral.
Não é difícil perceber, que quando o estado se sente ameaçado, procura imediatamente lançar as suas sementes do temor, para produzir safras abundantes de medo e ansiedade, que tragam para o estado ganhos políticos e comerciais. Com esse tipo de abordagem, o estado inicia o que chamamos de processo de classificação da sociedade, e procurando dar uma roupagem bonita para suas terminologias, classifica pessoas como “problemas de segurança” e logo a seguir anuncia em suas promessas as “medidas de segurança” que podem resolver o problema. É assim, que de forma simples e fácil o estado consegue permissão social, para promover extermínios, com a máscara de uma higiene social. O problema moral se torna também um problema legal. Numa nota de rodapé do livro IV do Emílio, ele escreve: “O espírito universal das leis em todos os países é favorecer o mais forte contra o mais fraco, e os que têm contra os que não têm nada: essa desvantagem é inevitável e sem exceção”. (7) (Émile, Paris, Classiques Garnier, 1924, p.270).

Bem diante dos nossos olhos, “estamos presenciando uma crise profunda não deste ou daquele governo, mas da própria democracia representativa em todas as suas formas”. (8). Semelhantemente, os partidos políticos estão perdendo o poder de atração. (9). Mais do que raiva os cidadãos atualmente expressam repulsa e desprezo por seus líderes políticos e funcionários do governo. (10)

Nesse contexto, de baixo de nossos olhos surge a resposta “violenta” daqueles que têm estampados em suas humildes embalagens o rótulo de “problemas de segurança”. É um ciclo que se agrava e se repete parecendo que não terá fim.

 No meio do caos, numa busca por “segurança”, vemos sendo construída ao nosso redor, uma realidade urbana de “eremitério”, formada por condomínios planejados, cercados por muros, para livrar seus cidadãos de bem dos problemas da cidade. Os que investem pesado nesta direção, reforçam a cada dia o discurso de que suas comunidades fechadas, são agora mundos separados. Para sua proteção é preciso criar um mundo à parte dos que são socialmente inferiores.

O que estamos esquecendo, é que todas as grades têm dois lados. Essas grades dividem em duas partes um espaço que de outro modo seria contínuo: um “dentro” e um “fora”. Quando fechamos nossas vidas para o próximo, nós também os isolamos dos lugares seguros, decentes, agradáveis, confinando-os a sua dor e as ruas. Na verdade, erguemos e fortalecemos os “guetos voluntários” dos mais favorecidos e os “guetos forçados” dos desfavorecidos. Nos esquecemos que “onde o direito e a liberdade são tudo, os inconvenientes não são nada”. (11)

Esse modelo vigente, torna cada vez mais difícil o enfretamento da questão da pobreza. Tratar com seriedade a questão dos pobres exigirá de nós uma rede global de cooperação entre pessoas que nunca se encontraram e que não necessariamente confiam umas nas outras. Vemos uma sociedade que de forma quase unânime reconhece que os pobres precisam de ajuda para satisfazer suas necessidades básicas, contudo grande parte está cética quanto ao mundo ser capaz de encontrar uma maneira eficaz de oferecer essa ajuda.

A questão é quase sempre tratada de forma muita simplória e reducionista, pergunta-se “se os pobres são pobres porque são preguiçosos, ou porque governos são corruptos, como a cooperação global poderia ajudar?” (12). Certamente que essas duas crenças comuns estão erradas, representam apenas uma parte da explicação. Os desafios são infinitamente maiores, desafios estruturais impedem os pobres de pôr o primeiro pé na escada do desenvolvimento.

O nosso maior desafio não está somente em enfrentar a preguiça e a corrupção. Na questão da preguiça o tema é bastante complexo, pois já são inúmeras as diferentes manifestações desta cultura que se mostra cada dia menos trabalhadora e mais ociosa. Domenico De Masi, em seu livro “O Ócio criativo” faz a seguinte afirmação: “da mesma maneira, eu me limito a registrar que estamos caminhando em direção a uma sociedade fundada não mais no trabalho, mas no tempo vago”. (13). Neste tempo trabalhamos menos com as mãos e mais com o cérebro.

Diante do gigante da corrupção na política, o problema da pobreza também se agiganta. No modelo político atual, e na medíocre e equivocada (geralmente mal-intencionada) visão de nossos governantes, tal tarefa é impossível de ser desenvolvida. Precisamos de grandes intervenções políticas (de expressão popular) para que tais mudanças comecem a ganhar espaço, e tais intervenções se mostrem no mínimo desejáveis. Precisamos combater o isolamento geográfico e espacial, e a vulnerabilidade, com uma nova visão de responsabilidade política que possam nos ajudar a cumprir essa tarefa.

Nosso trabalho não é eficaz, porque não tratamos com seriedade a questão dos insumos agrícolas. Não há políticas relevantes e de longo prazo neste setor. Os investimentos em saúde básica são precários. Investimentos em educação não contemplam com justiça e igualdade as camadas de nossa população. Temas como energia, transportes e serviços de comunicação estão no controle de minorias e sem qualquer envolvimento da população para o seu real atendimento.

 Se desejamos enfrentar a questão da pobreza, precisamos criar uma conexão que vá desde as comunidades pobres aos centros de poder e riqueza. Esse diálogo precisa ser aberto, essa é uma porta que precisa se abrir. Precisamos aumentar gradativamente a escala dos investimentos que tenham como foco o enfrentamento da questão da pobreza.

Não se combate à pobreza, se não se coloca nas mãos dos pobres oportunidade de trabalho e de capital. Os miseráveis precisam de pelo menos seis tipos de capital:
- Capital Humano: Saúde, nutrição e treinamento para produção.
- Capital Empresarial: Máquinas, instalações, transportes e serviços.
- Infra-estrurura: Estradas, energias, água e saneamento.
- Capital Natural: Propriedades, terras ou solos.
- Capital Público Institucional: Leis e sistemas judiciais, policiamento.
- Capital de Conhecimento: Formação técnica, científica para produção de capital.

Como a sociedade precisa e carece da ajuda dos intelectuais para que essas medidas sejam adotadas. Ainda que alguns não acreditem, os intelectuais são em geral, os melhores amigos dos pobres. Acreditamos que, todas as pessoas, mesmo as iletradas e constrangidas aos trabalhos mais rudes, são intelectuais, trabalham com idéias. É claro que num sentido mais restrito, intelectuais são os que fazem desse trabalho seu ofício. Intelectual é aquele que dialoga com a sociedade a partir de um saber específico. Esse diálogo que paira sobre os saberes é conhecimento. A questão é que todo saber é de grupo e todo conhecimento, sendo comunicação é ideologicamente apropriável.

No combate à pobreza esbarramos com o burguês satisfeito, com o colonialismo cultural e com a sem-vergonhice política entre outros.

O desafio no combate à pobreza é gigantesco. O Estado, em qualquer circunstância, é autoritário. Só se pode ter uma polícia, uma moeda, uma lei e assim por diante. Se pode colocar o Estado a serviço da democracia em qualquer de suas formas – a burguesa, a socialista, a populista...- mas por definição ele não pode ser democrático. No que se refere à riqueza, funciona como um transferidor de renda, para cima ou para baixo.... Só uma política que estimulasse processos ao invés de produtos, circuitos ao invés de lugares, a centralidade e a anterioridade de tudo, ao invés da produção de objetos de cultura, seria inovadora. Uma tal política permitiria ao Estado quem sabe, transferir renda para os pobres. (14).

Para não desanimar diante desta enorme tarefa, lembre-se: seu trabalho não é pôr fim à pobreza, mas servir aqueles que estão sofrendo. Faça o que puder e confie em Deus em oração quanto aos resultados. (15).

Você quer mesmo ajudar? No livro o Fim da Pobreza (16) de Jeffrey Sachs, podem ser encontradas algumas sugestões:
- Comprometer-se com o fim da pobreza. O primeiro passo é compromisso com a tarefa.
- Adotar um plano de ação. Sem direção e ação não se chega a lugar algum.
- Elevar a voz dos pobres. O mundo precisa ouvir essas “abafadas” vozes.
- Assumir um compromisso pessoal. No fim a coisa volta para nós como indivíduos.

 A questão não é quantos vão. A questão é se você vai. São os indivíduos que trabalhando em uníssono modelam a sociedade. Os compromissos sociais sempre serão compromissos individuais. Eu assumirei o meu sem necessariamente saber se cada um assumirá o seu.

“Ele espalhou, deu aos necessitados; a sua justiça permanece para sempre, e a sua força se exaltará em glória”. (Salmos 112.9).

Carlos Elias de Souza Santos
Pastor Titular da Primeira Igreja Batista de Campo Grande – RJ.

REFERÊNCIAS:
(1) SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do Social – Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. P. 29
(2) BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 22ª Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. P. 488.
(3) BAUMAN, Zygmunt. Danos Colaterais: desigualdades sociais numa era global. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. P. 191
(4) Ibid., p. 192
(5) DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo. Trad. Léa Manzi. Rio de Janeiro: sextante, 2000. P. 256
(6) BAUMAN, Zygmunt. Danos Colaterais, p. 70
(7) ROSSEAU, Jean-Jaques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Penguin Classics Companhia das letras, 2011. P. 34. (Émile, Paris, Classiques Garnier, 1924, p.270).
(8) TOFFLER, Alvin. A Terceira Onda. Trad. João Távora. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1980. P. 386.
(9) Ibid., p. 389
(10) Ibid., p. 390
(11) SACHS, Jefrey D. O Fim da Pobreza: Como acabar com a miséria mundial nos próximos vinte anos. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. P. 151.
(12) Ibid., p. 265.
(13) DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo, p. 18.
(14) SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do Social, p. 236.
(15) ARMSTRONG, Aaron. O Fim da Pobreza. O evangelho, a Nova Criação e a Necessidade de um Salvador. Trad. Flávia Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2015. P. 127.
(16) SACHS, Jefrey D. O Fim da Pobreza, págs. 411-14

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