A ORIGEM DO MAL

TEODICEIA: A origem do mal.
Por: Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716)

“...ainda é preciso satisfazer às dificuldades mais especulativas e mais metafísicas das quais se fez menção e que tem relação com a causa do mal. Pergunta-se inicialmente de onde vem o mal. Si Deus est, unde malum. Se non est, unde bonum? (Se Deus existe, de onde vem o mal? Se Ele não existe, de onde vem o bem?). 

Os antigos atribuíam a causa do mal a matéria, pois acreditavam ser incriada e independente de Deus; mas nós, que derivamos de Deus todo o ser, onde encontraremos a fonte do mal? A resposta é que ela deve ser procurada na natureza ideal da criatura, desde que essa natureza esteja encerrada nas verdades eternas que estão no entendimento de Deus independentemente da vontade Dele. Pois é preciso considerar que há uma imperfeição original da criatura antes do pecado, porque a criatura é essencialmente limitada, de onde vem, que ela não poderia saber tudo, e que ela pode se enganar e cometer outras faltas. Platão disse do Timeu que o mundo tinha sua origem do entendimento associado à necessidade. Outros associaram Deus à natureza. Pode se dar um bom sentido a isso. Deus seria o entendimento, e a necessidade, isto é, a natureza essencial das coisas, seria o objeto do entendimento, enquanto ele consiste nas verdades eternas. Mas esse objeto é interno e se encontra no entendimento divino. E é lá que se encontra não apenas a forma primitiva do bem, mas ainda a origem do mal: é a região das verdades eternas que é preciso ser colocada no lugar da matéria, quando se trata de procurar a fonte das coisas. Essa região é, por assim dizer, a causa ideal do mal tanto quanto do bem; mas, propriamente falando, o que há de formal no mal não tem nada de eficiente, pois ele consiste na privação, como nós veremos, isto é, naquilo que a causa eficiente não faz. É por isso que os escolásticos têm costume de chamar a causa do mal de deficiente.

Podemos considerar o mal de maneira metafísica, física e moral. O mal metafísico consiste na simples imperfeição, o mal físico, no sofrimento, e o mal moral, no pecado. 

Ora, ainda que mal físico e o mal moral não sejam necessários, é suficiente que em virtude das verdades eternas eles sejam possíveis. E como essa imensa região das verdades contém todas as possibilidades, é preciso que haja uma infinidade de mundos possíveis, que o mal entre em muitos deles, e que mesmo o melhor de todos o encerre; é isso que determinou Deus a permitir o mal.
Mas alguém me dirá: por que você me fala de permitir? Deus não faz o mal e ele não o quer, é aqui que será necessário explicar o que significa permissão, a fim de que se veja que não é sem razão que se emprega esse termo. Mas antes é preciso explicar a natureza da vontade, que tem seus graus; e no sentido geral, pode se dizer que a vontade, consiste na inclinação a fazer algo, proporcionalmente ao bem que ele encerra. Essa vontade é chamada de antecedente quando ela está solta, e considera à parte cada bem enquanto bem. Nesse sentido, pode se dizer que Deus tende a todo bem enquanto bem, “ad perfectionem simpliciter simplicem” (A perfeição simplesmente simples), no falar escolástico, e isso por uma vontade antecedente. Ele tem uma firme inclinação para santificar e para salvar todos os homens, para excluir o pecado e impedir a danação. Pode-se mesmo dizer que essa vontade é eficaz por si (per si), isto é, de modo que o efeito se daria, se não houvesse alguma razão mais forte que o impedisse; pois essa vontade não chega ao último esforço (ad summum conatum), do contrário ela jamais deixaria de produzir o seu efeito pleno, sendo Deus o mestre de todas as coisas. O sucesso total e infalível não pertence senão à vontade consequente, como é chamada. É ela que é plena, e em sua consideração esta regra tem lugar: que nunca se deixe de fazer o que se quer quando se pode [fazê-lo]. Ora, essa vontade consequente, final e decisiva, resulta do conflito de todas as vontades antecedentes, tanto daquelas que tendem ao bem, quanto daquelas, que resistem ao mal; e é do concurso de todas essas vontades particulares que vem a vontade total, como na mecânica o movimento composto resulta de todas as tendências que concorrem em um mesmo [corpo] em movimento (mobile) e satisfaz igualmente a cada uma, na medida em que seja possível fazer tudo de uma só vez. E é como se o corpo em movimento se dividisse entre essas tendências...
Disso resulta que Deus quer antecedentemente o bem e, consequentemente, o melhor, e no que diz respeito ao mal, Deus não quer de modo algum o mal moral e não quer de maneira absoluta o mal físico ou os sofrimentos; é por isso que não há predestinação absoluta para a danação; e se pode dizer do mal físico, que Deus o quer geralmente como um castigo por causa da culpa, e também geralmente como um meio próprio para um fim, isto é, para impedir maiores males, ou para obter, bens maiores. A pena também serve para a correção e para o exemplo, e o mal serve geralmente para apreciar melhor o bem, e algumas vezes também contribui para uma maior perfeição daquele que o sofre, como o grão que se semeia está sujeito a uma espécie de corrupção para que germine: é uma bela comparação da qual Jesus Cristo se serviu pessoalmente. (João 12.24).

No que diz respeito ao pecado ou ao mal moral, embora também aconteça muito frequentemente que ele possa servir de meio para obter um bem ou para impedir um outro mal, não é isso, entretanto, o que o torna um objeto suficiente da vontade divina ou mesmo um objeto legítimo de uma vontade criada; é preciso que ele só seja admitido ou permitido na qualidade de ser considerado como uma sequência certa de um dever indispensável, de modo que aquele que não quisesse permitir o pecado de outrem faltaria ele próprio com aquilo que deve; como se um oficial que tivesse de guardar um posto importante o deixasse, especialmente em um tempo de perigo, para impedir em uma vila uma querela entre dois soldados da guarnição prestes a se matarem.

A regra que sustenta “non esse facienda mala, ut eveniant bona”, (Refere-se à Epistola aos Romanos III:8: “[E porque] não haveríamos [nós – como aliás alguns afirmam caluniosamente que nós (os cristãos) ensinamos] de fazer o mal para que aconteça o bem), e que chega a defender a permissão de um mal moral para se obter um bem físico, bem longe de ser violada é confirmada aqui, e dela se mostra a origem e o sentido. Não se aprovará que uma rainha pretenda salvar o seu Estado cometendo um crime e nem mesmo permitindo um. O crime é certo, e o mal do Estado é duvidoso; além do fato de que essa maneira de autorizar crimes, se fosse aceita, seria pior que a desordem de algum País, que já é frequente sem isso, mas aconteceria talvez mais por um determinado meio escolhido para impedi-la. Porém, no que diz respeito a Deus, nada é duvidoso, nada poderia ser contrário à regra do melhor, que não sofre qualquer exceção nem dispensa. E é nesse sentido que Deus permite o pecado; pois falharia com o que ele deve, com o que deve a sua sabedoria, a sua bondade, a sua perfeição, se não seguisse o forte resultado de todas as suas tendências para o bem, e se não escolhesse aquilo que é absolutamente o melhor, não obstante o mal da culpa que aí se encontra envolvido pela necessidade suprema das verdades eternas. De onde é preciso concluir que Deus quer todo o bem em si antecedentemente, que ele quer o melhor consequentemente com um fim, que ele quer algumas vezes o indiferente e o mal físico como meio, mas que ele só quer permitir o mal moral a título de sine qua non ou da necessidade hipotética que o liga com o melhor. É por isso que a vontade consequente de Deus, que tem o pecado por objeto, é apenas permissiva.



LEIBNIZ, G. W. TEODICEIA sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do Homem e A Origem do Mal. Trad. William de Siqueira Piauí e Juliana Cecci Silva. 1ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.  Págs. 147-150.

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