“Disse-lhe, pois, Pilatos: Logo tu és rei? Jesus respondeu: Tu dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
- Disse-lhe Pilatos: QUE É A VERDADE? ”. (João 18:37-38)
“Por isso deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo; porque somos membros uns dos outros”. (Efésios 4:25)
“Desde a época de nossa vida em que passamos a dominar a
linguagem, somos ensinados que nossas palavras devem corresponder à verdade.
Que significa isso?
Que quer dizer “falar a verdade”?
Que exigências isso implica?
É evidente que, inicialmente, são os pais que procuram
estruturar nosso relacionamento com eles através do postulado da veracidade; em
consequência, essa exigência também fica restrita inicialmente – no sentido que
os pais lhe atribuem -, e se refere ao limitado círculo familiar. Há que se
observar, ainda, que o relacionamento contido nessa exigência não pode ser invertido
simplesmente. A veracidade da criança para com os pais é substancialmente
diferente daquela dos pais para com a criança. Enquanto a vida da criança é um
livro aberto para os pais e a sua palavra deve revelar tudo o que houver de
oculto e secreto, não se pode dizer o mesmo na inversão do relacionamento. No
que diz respeito à veracidade, o direito dos pais em relação à criança é outro
do que o da criança em relação aos pais.
Disso já decorre que “falar a verdade” significa algo
diferente dependendo do lugar onde se está. É preciso ponderar as respectivas
situações. É preciso perguntar se e de que maneira alguém tem o direito de
exigir de outrem que fale a verdade. Tal como a comunicação entre pais e
filhos, de acordo com sua natureza, é uma outra do que entre marido e mulher,
entre amigos, entre professor e aluno, entre uma autoridade e um súdito, entre
um amigo e um inimigo, assim também a verdade contida nessas palavras é uma
outra.
A objeção que aqui logo se faz de que não devemos a palavra
veraz a esse ou aquele, mas somente a Deus é procedente, desde que não se
esqueça que Deus não é um princípio Universal, mas o Deus vivo que me colocou
numa vida dinâmica e nela exige meu serviço. Quem fala em Deus não pode riscar
simplesmente o mundo real em que vive.
Senão não estaria falando do Deus que em Jesus Cristo entrou neste
mundo, mas de algum ídolo metafísico. A questão é, precisamente, como faço
valer na minha vida concreta, com suas variadas situações, o compromisso da
verdade que tenho com Deus. O dever da veracidade devido a Deus tem que tomar
forma concreta no mundo. Nossa palavra não deve corresponder à verdade em
princípio, mas concretamente. Veracidade que não é concreta não tem caráter de
verdade perante Deus.
Portanto, “falar a verdade” não é apenas uma questão de
mentalidade, mas de conhecimento correto e de avaliação séria das reais
circunstâncias. Quanto mais variadas forem as circunstâncias de vida de uma
pessoa, tanto maior será a responsabilidade, como também a dificuldade, de
“falar a verdade”.
A Criança que vivencia apenas um relacionamento, o dos pais,
ainda nada tem a ponderar e avaliar. Mas já o próximo ambiente em que é
colocada, a escola, traz a primeira dificuldade. Por isso é de máxima
importância pedagógica que os pais esclareçam os filhos, de alguma forma, que
aqui não podemos discutir sobre a diferença desses ambientes e suas
responsabilidades.
Dizer a verdade é coisa que se deve aprender. Isso parece
horrível para quem acha que só a mentalidade importa e que, quando essa for
irrepreensível, todo o resto será facílimo. Contudo, como é fato irreversível
que a questão ética não pode ser separada da realidade, o conhecimento cada vez
melhor dessa necessariamente é parte integrante da ação Ética. Na questão que
estamos tratando, a ação consiste em falar. A realidade deve ser expressa em
palavras. É nisso que consiste dizer a verdade. Com isso surge,
inevitavelmente, a pergunta pelo “como” das palavras. Em cada caso, trata-se da
“palavra correta”. Achá-la é questão de longo, sério e progressivo esforço,
baseado em experiências e reconhecimento da realidade. Para dizer como algo
realmente é, ou seja, para ficar na verdade, é preciso levar em consideração
como a realidade é em Deus, por Deus e para Deus.
Restringir o problema da veracidade da palavra a casos
isolados de conflito é uma postura superficial. Afinal, cada palavra que falo
está sob a determinação de ser verdadeira. Independentemente da veracidade de
seu conteúdo, o relacionamento com a outra pessoa que nela se expressa pode ser
verdadeiro ou não. Posso lisonjear, posso ser arrogante, posso fingir sem
expressar materialmente uma falsidade; mesmo assim minha palavra não é
verdadeira, porque estou corrompendo e destruindo a realidade do relacionamento
de marido e mulher ou do chefe e subordinado. A palavra isolada sempre é parte
de um todo da realidade que quer manifestar-se através da fala. Dependendo de
para quem eu falo, quem me perguntou, de que vou falar, minha palavra tem que
ser diferente se quiser corresponder à verdade. A palavra que corresponde à
verdade não é uma grandeza constante em si, mas tão viva como a própria vida.
Onde ela se desvincula da vida e do relacionamento com o próximo tal qual é,
onde “se diz a verdade” sem considerar a quem fala, ela só tem aparência, mas
não a essência da verdade.
É o cínico que, na pretensão de “falar a verdade” em
qualquer lugar, a qualquer hora e a qualquer pessoa de igual maneira, só exibe
uma imagem idolátrica e morta da verdade. Ao aparentar fanatismo pela verdade,
que não pode ter consideração com fraquezas humanas, ele destrói a verdade viva
entre as pessoas. Fere o pudor, profana o mistério, desmerece a confiança, trai
a comunidade em que vive e sorri arrogantemente do descalabro que provocou, da
fraqueza humana que “não aguenta a verdade”. Diz ele que a verdade é
destruidora e exige suas vítimas; sente-se como um Deus acima das criaturas
fracas e não sabe que está servindo a Satanás.
Há uma sabedoria diabólica. Sua característica é que, sob a
aparência de verdade, nega tudo que é real. Vive do ódio a tudo que é real, ao
mundo que foi criado e amado por Deus. Ela se dá a aparência de executar o
juízo de Deus sobre a apostasia da realidade. Contudo, a verdade de Deus Julga
a Criação por sobre a apostasia da realidade. Contudo, a verdade de Deus julga
a criação por amor, enquanto que a verdade de Satanás o faz por inveja e ódio.
A Verdade de Deus fez-se carne em meio ao mundo, está viva em meio ao real; a
verdade de Satanás é a morte de tudo que é real.
A ideia da verdade viva é perigosa e provoca a suspeita de
que a verdade possa e deva ser adaptada à respectiva situação, o que faria com
que o conceito de verdade se diluísse completamente e mentira e verdade se
aproximassem a ponto de não poderem ser mais distinguidas. Também aquilo que
dissemos sobre o necessário conhecimento da realidade poderia ser mal
interpretado no sentido de que o grau de verdade que estou disposto a dizer ao
próximo dependeria de uma postura calculista ou pedagógica. É importante
atentar para esse perigo. A possibilidade de enfrentá-lo, no entanto, não pode
consistir em outra coisa do que no cuidadoso discernimento dos respectivos
conteúdos e limites que a própria realidade prescreve à afirmação para torná-la
verídica. Jamais, porém, se deve trocar o conceito da verdade viva pelo
conceito cínico e formal da verdade por causa dos perigos que o primeiro
contém”.
...
“Jesus chama Satanás de “pai da mentira” (João 8.44).
Mentira antes de tudo, é a negação de Deus, tal como se revelou ao mundo. “Quem
é um mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo?”. (1 João 2.22).
Mentira é a contestação da Palavra de Deus como ele a falou em Jesus Cristo e
na qual repousa a criação. Consequentemente, mentira é a recusa, negação e
destruição conscientes e propositais da realidade, como ela foi criada por Deus
e nela subsiste, na medida em que isso acontece por palavras e por silêncio.
Nossa palavra tem a função de , em harmonia com a Palavra de Deus, expressar a
realidade como ela é em Deus; nosso silêncio deve ser o sinal para o limite que
foi colocado para a palavra pela realidade como ela é em Deus”.
BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 10ª Ed. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2009. Págs. 231-35.
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