ABENÇOADA INUTILIDADE

Dificilmente chegaríamos a um título tão desencontrado, tão contraditório, tão paradoxal, tão “sem nada a ver” do que este.
Para prosseguirmos, nesta reflexão pastoral, é preciso que se diga que o título acima não surge do nada ou com a finalidade de tornar-se uma “frase de efeito”. Nem mesmo para fazer apologia do descuido e da irresponsabilidade na Obra de Deus. Ou, quem sabe, para defender um possível complexo de inferioridade, como qualidade indispensável para os discípulos do Senhor Jesus. Absolutamente! Ele é extraído da Palavra de Deus.

Antes de mais nada, mantenhamos em mente que o Senhor Jesus está discorrendo sobre quatro assuntos, todos eles nos dez primeiros versículos do capítulo 17 do Evangelho de Lucas.

O “escândalo” é o primeiro deles, nos versículos 1 e 2. Conquanto impossível de não acontecer, o peso da responsabilidade recai sobre aquele através de quem o escândalo acontece, ensejando o tropeço de muitas outras pessoas.

O “perdão” vem logo depois, nos versículos 3 e 4. Se de um lado devemos estar atentos para não sermos pedra de tropeço para outros, tudo devemos fazer, por outro lado, para não abrigarmos amargura e ressentimento contra quem quer que seja. E o que pode ser pior: a recusa em perdoarmos a quem nos pede perdão. Pelo contrário, devemos perdoar tantas vezes quanto formos chamados para perdoar.

Diante desse último ensinamento, os discípulos se sentem perplexos, quando não espiritualmente impotentes. “Aumenta-nos a fé”, suplicam eles. Eis o terceiro assunto – “o poder da fé”. Realmente, não é o caso de termos “mais fé”, mas, sim, de usarmos a fé que “já temos”.

Finalmente, o quarto ensinamento – "a obediência do servo", nos versículos 7 a 10. O argumento do Mestre está centrado na permanente disponibilidade e indisputável humildade que devem caracterizar o “servo”. De volta para casa, cansado após apascentar o gado, ele não é convidado para descansar e se alimentar. Que nada! Cabe-lhe agora preparar a ceia do seu senhor e servi-lo.

É aqui que a ABENÇOADA INUTILIDADE entra em cena. Lucas 17.10: “Assim também vós, quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis; fizemos somente o que devíamos fazer”. Fora de todo o contexto acima, as palavras do Senhor Jesus parecem mesmo encaixar-se perfeitamente no sentimento mencionado no terceiro parágrafo.

No entanto, ai de nós e de nossa participação na Obra de Deus se não formos agraciados com a consciência dessa ABENÇOADA INUTILIDADE. Vamos conferir?

1. A consciência da ABENÇOADA INUTILIDADE gera em nós a visão de que a Obra de Deus é Dele mesmo, não nossa. Se o próprio Senhor Jesus se sujeita a essa convicção, conforme a afirmação que Ele faz em João 9.4 – “Importa que façamos as obras Daquele que me enviou enquanto é dia; vem a noite, quando ninguém pode trabalhar” – por que não nós? Não estamos fazendo um favor a Deus!

2. A consciência da ABENÇOADA INUTILIDADE firma em nós a certeza de que o progresso e o desenvolvimento da Obra de Deus procedem Dele, não de nós. Quanto a isso, o apóstolo Paulo é de uma franqueza desconcertante, para não dizer brutal, em 1 Coríntios 3.7: “De modo que, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento”. Nenhum de nós é coisa alguma. Ainda bem!

3. A consciência da ABENÇOADA INUTILIDADE acentua em nós a expectativa de que o nosso desempenho na Obra de Deus tem a ver com fidelidade, não com atividade. Servindo a Deus com o melhor do que somos e temos!

Philip Paul Bliss nos legou belíssima poesia intitulada “Tudo por Cristo”, que se transformou num dos hinos mais conhecidos do Cantor Cristão. Trata-se do hino nº 300. Na terceira estrofe e estribilho, ele diz:

“Quero servir a Cristo, de prontidão estar. Útil na paz, na luta, pronto pra trabalhar”.

“Quero viver pra Cristo, Tudo Lhe dedicar. Tudo por Cristo, tudo, tudo quero renunciar”.

Conclamo, pois, o Povo de Deus em todo e qualquer lugar, a que, com gratidão e alegria, aceitemos a ABENÇODA INUTILIDADE que o Senhor Jesus Cristo nos propõe.

Sem ela, não sairemos do lugar. Com ela, não conheceremos limites!


Pr. Fausto Aguiar de Vasconcelos
Diretor da Divisão de Evangelismo e Educação da Aliança Batista Mundial

Publicado na edição 20 da Coluna da Verdade